Quatorze meses após o início da pandemia no Brasil, as escolas permanecem fechadas em 14 estados e no Distrito Federal. A evasão escolar, as desigualdades sociais e educacionais, os prejuízos à aprendizagem, a insegurança alimentar e mesmo a insegurança física aumentam dia após dia, com consequências ainda inestimáveis, comprometendo o futuro de milhões de crianças e adolescentes e o desenvolvimento social e econômico do país.
Em um momento tão decisivo para milhões de estudantes, o Ministério da Educação (MEC) foca energia na aprovação da Educação domiciliar, ou homeschooling, adotado por cerca de 35 mil crianças e adolescentes no Brasil, segundo dados que apresenta. Lançada no último dia 28 de maio, a Cartilha “Educação Domiciliar, um direito humano tanto dos pais quanto dos filhos”, defende que “a pandemia ressalta a necessidade de regulamentação desse direito das famílias” e finaliza, na última página, com a mensagem de que “o Brasil não pode mais esperar”.
A Educação domiciliar ganha força
O ensino domiciliar já foi pauta de artigo nesta coluna. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a modalidade não é vedada pela Constituição, mas só pode ser adotada se for regulamentada por lei pelo Congresso Nacional, para prever o núcleo básico curricular, a supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público.
Nessa modalidade de ensino os próprios pais ou responsáveis assumem diretamente a educação formal dos filhos, que é feita em casa. As aulas podem ser ministradas por eles ou por professores particulares contratados com o auxílio de materiais didáticos e pedagógicos.
Mais de 60 países permitem ou não proíbem o ensino domiciliar, como é o caso dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, França, Portugal, Bélgica, Irlanda, Finlândia, entre outros. Outros proíbem essa prática, como é o caso da Alemanha, Espanha, Grécia e Suécia. É um fenômeno emergente e crescente. Nos Estados Unidos, 2,5 milhões de estudantes do Fundamental e Médio adotam hoje o ensino domiciliar. O grau de intervenção estatal varia: há casos em que sequer é necessário notificar o órgão educacional oficial, enquanto em outros ocorre o acompanhamento regular do estudante, com a submissão a avaliações periódicas para supervisão do desempenho acadêmico.
O tema, que é polêmico e divide opiniões, foi submetido à Câmara dos Deputados pela primeira vez em 1994, quando o Deputado João Teixeira apresentou o Projeto de Lei (PL) nº 4.657. De lá pra cá muitos projetos já passaram pelo Parlamento, inclusive, a Proposta de Emenda à Constituição, a PEC nº 444, apresentada, em 2009, pelo Deputado Wilson Picler.
A pauta é defendida pelo governo Bolsonaro. A discussão atualmente se concentra no PL nº 3.179/2012, do Deputado Lincoln Portela (PR-MG), que faculta aos sistemas de ensino admitir a Educação básica domiciliar, sob a responsabilidade dos pais ou tutores responsáveis pelos estudantes, observadas a articulação, supervisão e avaliação periódica da aprendizagem pelos órgãos próprios desses sistemas, nos termos das diretrizes gerais estabelecidas pela União e das respectivas normas locais.
Em maio deste ano, a Relatora do PL, Deputada Luisa Canziani (PTB-PR), concluiu o Substitutivo ao PL. Ele contempla que ao menos um dos pais ou o responsável legal pelo estudante tenha diploma de nível superior e, se não tiver, deve contratar um professor e comprovar sua habilidade para a docência. As crianças devem ser obrigatoriamente matriculadas em escola pública ou privada, a quem incumbirá aferir a frequência e supervisionar as atividades do aluno, sendo designado um professor da instituição que fará o acompanhamento do estudante e realizará reuniões semestrais com os pais.
Será necessário cumprir os componentes curriculares referentes ao ano escolar de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), manter registro periódico das atividades pedagógicas realizadas e enviar à escola relatórios bimestrais dessas atividades. O estudante precisará participar de avaliações e exames do sistema nacional de avaliação da Educação Básica (e quando houver dos exames dos sistemas estadual e municipal). As famílias devem garantir a convivência familiar e comunitária de seus filhos. Para impedir abusos, o Conselho Tutelar poderá fazer inspeções e os pais ou responsáveis deverão apresentar certidões criminais da Justiça Federal e Estadual, e não podem ter sido condenados ou estar cumprindo pena por crimes hediondos, tráfico de drogas, delitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente ou violência doméstica. Se forem descumpridas as exigências da lei, os pais ou responsáveis perderão o exercício do direito à opção pela educação familiar.
Para além desse PL, o governo aposta na aprovação do PL nº 3262/2019, proposto pelos Deputados Chris Tonietto (PSL-RJ), Bia Kicis (PSL-DF) e Caroline de Toni (PSL-SC), que propõe uma alteração no artigo 246 do Código Penal, a fim de prever que a Educação domiciliar (homeschooling) não configure crime de abandono intelectual.
O foco necessário
Essa coluna já defendeu a posição de que a escola possui uma função socializadora que é fundamental à vida em sociedade e à construção do conceito de cidadania. Espaço público de vivências e aprendizado, a escola ensina a lidar com a diversidade e a exercitar a tolerância diante da diferença. O contraponto construído a partir de outras visões de mundo, cujos valores e crenças não necessariamente os pais ou responsáveis compartilhem, é essencial à formação plena do indivíduo, sob pena de se viver em uma bolha, potencializando extremismos e alienações.
Críticas à parte ao ensino domiciliar, fato é que o momento pede outro foco. Há uma infinidade de medidas que afetam 50 milhões de estudantes neste momento que exigem muito foco, coordenação, mobilização de esforços e priorização de recursos.
É urgente o preparo das redes estaduais e municipais para o retorno às aulas presenciais, com a aquisição de máscaras, a adequação física das escolas (para que ao menos tenham água potável e salas com ventilação), o monitoramento da situação epidemiológica com reação rápida e rastreamento de contatos, o treinamento da equipe escolar e a comunicação com as famílias. É preciso reunir esforços para a busca ativa dos estudantes que evadiram e a adoção de diversas providências de ordem pedagógica para a organização dos currículos, calendários e a recuperação da aprendizagem dos estudantes. É fundamental acelerar a vacinação de professores e profissionais da educação, cuja ordem de prioridade na fila dos imunizantes contra a Covid-19 foi finalmente anunciada pelo Ministério da Saúde no último dia 28 de maio, além de ampliar a conectividade de escolas, professores e alunos, não apenas em função da adoção do ensino híbrido com o qual conviveremos por um bom tempo, mas como estratégia para a necessária recuperação de aprendizagem dos alunos.
A complexidade da situação e a multiplicidade de ações necessárias demandam coordenação e colaboração. Nesse contexto crítico, era esperado que a União, no âmbito de seu dever constitucional de garantir a equalização de oportunidades educacionais e de coordenar a Política Nacional de Educação, capitaneasse esse movimento.
Agora a hora é de unir esforços para apoiar as redes de ensino para se estruturarem para a volta às aulas presenciais. Agora é hora de pensar estratégias efetivas para resgatar os alunos perdidos, estancar a evasão escolar e recuperar a aprendizagem. Agora é hora da educação pública ser prioridade nacional e isso se refletir na alocação de recursos e mobilização de energia, para não retrocedermos ainda mais. Isso sim é o que o Brasil não pode mais esperar.
Alessandra Gotti é fundadora e presidente-executiva do Instituto Articule. Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Foi Consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Publicado no site Nova Escola.