Direito à Educação: revolução digital pode diminuir desigualdade

Compartilhar dados relevantes pode levar a um planejamento mais eficaz da gestão pública e estratégias de redução da judicialização

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Publicado em https://novaescola.org.br/conteudo/18028/direito-a-educacao-revolucao-digital-pode-diminuir-desigualdade


Os desafios do setor produtivo brasileiro na era da 4ª Revolução Industrial têm sido um tema recorrente. Marcada pela tecnologia da informação, inteligência artificial, internet das coisas e aprendizagem de máquinas, essa nova revolução tem como diferencial o uso massivo de dados para criar redes inteligentes em toda a cadeia produtiva, que não apenas a controlem, mas possuam a capacidade de aprender, adaptar e corrigir situações de ociosidade e falhas na produção.

Pouco se tem discutido sobre o impacto dessa revolução em curso no plano social. Posicionado entre os 10 países mais desiguais do mundo, o Brasil possui quase 12 milhões de analfabetos e mais da metade dos adultos entre 25 e 64 anos não concluíram o ensino médio. São 1,5 milhão de crianças e jovens de 4 a 17 anos fora da escola e apenas um terço das crianças brasileiras de 0-3 anos estão em creches. Há, ainda, grandes discrepâncias no acesso à Educação entre as crianças cujos domicílios estão no quartil mais baixo de renda comparativamente às do mais alto.

Nesse contexto, é preciso pensar como as ferramentas tecnológicas disruptivas podem ser utilizadas para reduzir desigualdades sociais e de que modo a inovação pode contribuir para o aprimoramento das políticas públicas educacionais.

O Estado, assim como uma grande empresa, precisa estar apto a não somente gerenciar as políticas públicas, mas sobretudo retroalimentar o seu ciclo estrutural a partir da análise de dados (o petróleo da nova era!), fazendo correções no seu desenho e mudanças de rota, quando necessário.

A revolução digital pode trazer benefícios imensuráveis para o campo das políticas sociais e não podemos perder essa oportunidade de vista.

Mas como isso pode ser feito na prática? É possível exemplificar com três casos concretos relacionados à equidade no acesso à Educação Infantil, a um planejamento mais eficaz da gestão pública e às estratégias de redução da judicialização, por meio do compartilhamento de dados. 

Aumento da equidade no acesso à Educação Infantil

Cerca de 6,7 milhões de crianças estavam fora das creches em 2018. Todavia, segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2019, do Todos Pela Educação, enquanto 26% das crianças pertencentes aos domicílios que estão no quartil mais baixo de renda estão nas creches, esse percentual é de 55% para as do quartil mais alto de renda.

A tecnologia pode ser o caminho para induzir uma maior equidade no acesso à Educação Infantil, priorizando-se vagas para as crianças que mais precisam. O uso pelos Municípios da base de dados do CadÚnico, gerido pelo Ministério do Desenvolvimento Social, que reúne informações de 27 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade econômica, poderá mudar a realidade constatada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que identificou em auditoria que envolveu municípios de 17 Estados em 2017, que 45% dos gestores não sabem quantas crianças de 0 a 5 anos estão fora da escola e 47% deles não possuem critérios de priorização do acesso à rede de educação infantil, em razão da renda familiar.

Por não estarem no radar, essas informações essenciais deixam de guiar o planejamento da expansão da oferta e orientar a equalização do atendimento educacional ao identificar as crianças que deveriam estar na escola, seja porque se inserem na faixa etária de educação obrigatória, seja em função da sua peculiar condição de vulnerabilidade socioeconômica. 

Planejamento mais eficaz

A inovação na gestão dos dados oriundos do Sistema de Justiça pode contribuir, ainda, para sua maior transparência e qualidade, o que permitirá a formulação de melhores diagnósticos sobre a judicialização da educação e, por consequência, políticas públicas mais eficazes. Os dados existem, mas para possibilitar tal diagnóstico de forma georreferenciada e ao longo do tempo, inclusive para orientar o planejamento da expansão necessária na rede de atendimento, é preciso minerá-los e tratá-los. 

Para que tais dados gerem informações úteis, precisam ser adequados e suficientemente classificados, sem lacunas que ocultem informações relevantes. Um exemplo simples: a inexistência do assunto “creche” nas Tabelas Processuais Unificadas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que norteiam a catalogação das ações judiciais em todo território nacional – e servem, portanto, como um indicador do que é submetido à Justiça -, impede a sua exata quantificação.

Atento a essa necessidade, o Instituto Articule criou um grupo de trabalho especializado em Educação que se dedica há quase dois anos a rever essas Tabelas e que, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[1], tem se debruçado sobre o aprimoramento dos indicadores relativos à Educação.

Para que tais indicadores possam ser usados com segurança para fins regulatórios e de planejamento da gestão pública, essa proposta de revisão será colocada à prova, por meio de uma sofisticada análise jurimétrica no Tribunal de Justiça de São Paulo, que permitirá identificar as ações judiciais cujos assuntos possuem maior expressividade estatística para que se chegue a uma proposta final de Tabela para catalogar as ações judiciais no país.

Esse é o primeiro passo para que as informações oriundas do Sistema de Justiça possam ser usadas para retroalimentar o ciclo estrutural das políticas públicas a partir da análise de dados, permitindo correções de rumo no seu desenho pelo Executivo. Esses dados permitirão, ainda, que o próprio Judiciário avalie se o padrão de suas decisões tem contribuído para mitigar a desigualdade social no país. 

Redução da judicialização, por meio do compartilhamento de dados

Assim como o uso massivo de dados no setor produtivo cria redes inteligentes na cadeia produtiva, o compartilhamento de informações entre o Poder Executivo e o Sistema de Justiça permite a racionalização da judicialização e induz o aprimoramento da gestão da demanda existente.

Uma iniciativa inovadora que merece ser difundida nos Municípios brasileiros foi implementada recentemente pelo Município de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Educação, sob a gestão do Secretário João Cury Neto, e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, representada pelo Defensor Público-Geral Davi Eduardo Depiné Filho, com apoio do Instituto Articule.

Por meio da assinatura de um Termo de Cooperação Técnica foi pactuado o intercâmbio de informações, com o uso de ferramentas tecnológicas, para o desenvolvimento de ações conjuntas voltadas à promoção da resolução de conflitos relacionados à obtenção de vagas em creches, sem a necessidade de sua submissão ao Poder Judiciário. Em termos práticos, a Defensoria Pública poderá consultar todas as creches existentes na base de dados da Secretaria Municipal de Educação e ter acesso ao tempo de espera que uma determinada criança levará para obtê-la administrativamente.

Com o acesso a essas informações, e sendo razoável o tempo de espera, não será preciso pedir ajuda ao Poder Judiciário para conseguir a vaga, o que acaba por gerar a alteração da ordem cronológica da própria de espera (com a concessão de liminares ou sentenças), gerando mais desigualdades. 

Esses são alguns exemplos de como é possível aproveitar a evolução tecnológica do século XXI na área social, de modo a permitir não apenas análises prospectivas e maior resolutividade das instituições públicas, mas, sobretudo, maior acesso ao direito fundamental à educação.


Alessandra Gotti é fundadora e presidente-executiva do Instituto Articule. Advogada e Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Consultora da Unesco e Conselho Nacional de Educação.


[1] O Grupo de Trabalho de Educação (GT 8) da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais (CDDF) do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e a Comissão Permanente de Defesa da Educação (COPEDUC), constituída pelo Grupo Nacional de Procuradores Gerais (GNDH/CNPG) realizaram estudos com o Instituto Articule e participaram da primeira revisão técnica da proposta elaborada pelo Instituto em 15 de agosto de 2018.

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