Garantir vagas em creches para todas as crianças que precisam continua sendo um dos maiores desafios da educação no Brasil. O levantamento nacional Retrato da Educação Infantil 2024, conduzido pelo Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação no Brasil (Gaepe-Brasil), em parceria com o MEC e outras 10 instituições públicas e da sociedade civil, revelou que mais da metade das redes municipais do país não possuem critérios de priorização para a alocação de vagas em creches, mesmo onde há listas de espera. Isso significa que milhares de crianças em situação de vulnerabilidade estão sem acesso a um direito essencial, perpetuando desigualdades desde a primeira infância.
Diante desse cenário, o Gaepe-Brasil publicou a Manifestação nº 01/2025, que versa sobre a “Importância da implementação de critérios objetivos para a organização da lista de espera para acesso à creche, de maneira criteriosa, transparente e equitativa.” O documento reforça que a ausência de diretrizes claras compromete a equidade no acesso à educação infantil e dificulta a interrupção dos ciclos de pobreza e é assinado pelas seguintes instituições:
- Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon)
- Instituto Rui Barbosa (IRB)
- Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon)
- Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG)
- Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege)
- Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância
- Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação (Foncede)
- Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
- Instituto Articule
- Rede Nacional Primeira Infância (RNPI)
- Todos Pela Educação
- União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme)
- União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime)
Caminhos para garantir equidade no acesso às creches
A Manifestação do Gaepe-Brasil aponta que garantir equidade na alocação de vagas passa pela adoção de mecanismos, como: a criação de “Centrais de Vagas”, de preferência com informações digitalizadas, transparência na divulgação das listas de espera e critérios que priorizem crianças em maior vulnerabilidade, como aquelas oriundas de famílias de baixa renda, monoparentais ou que vivem em situação de risco social.
O documento também destaca a necessidade de um planejamento orçamentário estruturado e sustentável para garantir que a expansão das vagas seja acompanhada por qualidade, incluindo infraestrutura adequada, formação de profissionais e uma gestão democrática da educação infantil.
A necessidade de critérios de priorização está respaldada por um conjunto de normativas que reforçam a equidade no acesso à educação infantil. A Lei nº 14.851/2024 determina que estados e municípios realizem anualmente o levantamento da demanda por vagas na educação infantil e organizem listas de espera com base em critérios claros, incluindo a situação socioeconômica familiar e a condição de monoparentalidade. De forma complementar, a Lei nº 13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância) prevê que as políticas públicas para essa etapa educacional devem reduzir desigualdades, promovendo justiça social e equidade no atendimento às crianças em maior vulnerabilidade. Além disso, a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) garante a prioridade de matrícula para crianças com deficiência, e a Lei nº 14.344/2022 (Lei Henry Borel) assegura o direito à matrícula prioritária para crianças vítimas de violência doméstica.
Garantir não apenas o acesso, mas também a qualidade da educação infantil, é outro princípio central estabelecido na legislação. O Plano Nacional de Educação (PNE) e a Resolução CNE/CEB nº 1/2024, que institui as Diretrizes Operacionais Nacionais para a Educação Infantil, destacam a necessidade de infraestrutura adequada, formação continuada dos profissionais e gestão democrática das unidades de ensino.
A expansão de vagas precisa estar associada à qualidade da oferta, assegurando espaços planejados, acessíveis e inclusivos, além de investimentos contínuos que garantam o desenvolvimento integral das crianças. Esse princípio está alinhado às diretrizes da Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que estabelece parâmetros para garantir que a educação infantil cumpra seu papel essencial na formação das crianças, reduzindo desigualdades e promovendo oportunidades desde a primeira infância.
Além disso, o documento dialoga diretamente com as observações do Tribunal de Contas da União (TCU), que recentemente divulgou uma auditoria alertando para graves problemas na gestão do acesso a creches no Brasil, entre eles: a falta de critérios claros de priorização nas filas de espera, prejudicando crianças em maior vulnerabilidade; dados sobre a demanda por creches falhos e pouco confiáveis, dificultando o planejamento de novas vagas; falta de transparência na gestão das listas de espera, prejudicando o controle social.
Entre os principais benefícios da Manifestação para a sociedade brasileira, destacam-se:
- Transparência e acesso à informação: A recomendação de uma lista de espera organizada de maneira objetiva e transparente possibilita que as famílias saibam sua posição na fila, evitando distorções e incertezas. A adoção de sistemas digitais para o registro e consulta de dados facilita o controle social e a eficiência na gestão da demanda.
- Consolidação das recomendações legais sobre priorização de vagas: A manifestação se destaca por ser um espaço que consolida e organiza todas as recomendações legais para a priorização do acesso à creche, garantindo um direcionamento claro para gestores públicos e promovendo equidade na oferta desse serviço essencial.
- Priorização das crianças mais vulneráveis: O documento reforça que o direito à educação infantil é garantido a todo cidadão brasileiro, mas reconhece que, diante da escassez de vagas em alguns territórios, é fundamental adotar políticas que priorizem aqueles que mais precisam. Nesse sentido, orienta-se à adoção de critérios claros para que crianças em situação de maior risco – como aquelas com deficiência, vítimas de violência doméstica, pertencentes a famílias monoparentais ou inscritas no Cadastro Único – tenham prioridade na alocação das vagas, contribuindo para a redução das desigualdades educacionais e sociais.
- Garantia da qualidade na oferta da educação infantil: Além de organizar a demanda, a manifestação reforça a importância de manter padrões de infraestrutura e qualidade pedagógica, assegurando ambientes adequados para o pleno desenvolvimento infantil. Destaca-se ainda a necessidade de valorização dos profissionais da educação e da formação continuada.
- Planejamento sustentável e expansão das vagas: A manifestação recomenda que a ampliação do atendimento seja estruturada com base em planejamento orçamentário sólido, garantindo que os investimentos sejam compatíveis com as necessidades da população e evitando o comprometimento da qualidade do serviço.
- Busca ativa para ampliar o acesso: Reconhecendo a existência da chamada “demanda silenciosa” – famílias que não procuram o poder público por desconhecimento do direito à creche –, o documento sugere ações de busca ativa para identificar e incluir essas crianças no sistema educacional, garantindo que nenhuma criança fique sem atendimento por falta de informação.
- Embora não tenha força de lei, em si, a Manifestação é uma orientação e reflete o posicionamento de entidades que são referência para os gestores públicos na área da educação e para quem atua na rede de proteção da infância e da juventude, sendo, portanto, um documento com grande potencial de ser observado.
Crianças em situação de vulnerabilidade são as mais prejudicadas
O impacto da falta de acesso à educação infantil é significativo. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) de 2023, 2,3 milhões de crianças de até 3 anos estavam fora da creche por alguma dificuldade de acesso naquele ano.
O problema é ainda mais grave entre as famílias mais pobres: 28% das crianças pertencentes ao quintil mais pobre do país não frequentam a creche por falta de vagas, enquanto entre o quintil mais rico esse percentual cai para apenas 7%.
Embora a oferta de vagas em creches seja um dever legal do Estado, a falta de critérios claros e a escassez de vagas levam muitas famílias a recorrer à via judicial para garantir o atendimento. Como consequência, crianças cujos responsáveis têm mais conhecimento sobre seus direitos e acesso à assistência jurídica acabam conseguindo decisões favoráveis e avançam na fila de espera, passando à frente de outras que, muitas vezes, estão em situação de maior vulnerabilidade.
Esse efeito da judicialização aprofunda ainda mais as desigualdades, pois as crianças que mais precisam da creche – seja por questões socioeconômicas ou pelo impacto positivo no seu desenvolvimento – são as que têm menos condições de reivindicar esse direito.
A ausência de critérios de priorização e de transparência no processo de matrícula intensifica essas desigualdades, tornando ainda mais difícil garantir que as crianças mais vulneráveis sejam atendidas. Para reverter esse cenário, é essencial tratar a educação infantil com prioridade, assegurando que nenhuma criança fique para trás.
A íntegra da Manifestação do Gaepe-Brasil pode ser acessada aqui.
Sobre o Gaepe-Brasil
O Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação no Brasil (Gaepe-Brasil), é uma instância de diálogo e cooperação entre atores do setor público e sociedade civil envolvidos na garantia do direito à educação. Seu objetivo é fomentar maior interlocução entre essas instituições de forma que possam ser propostas ações articuladas e pactuadas para dar mais efetividade à política educacional, com foco na redução da desigualdade e em um ambiente de maior segurança jurídica. Idealizada e coordenada pelo Instituto Articule, a iniciativa tem cooperação da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa (CTE-IRB).